Epílogo e Contraponto: A Bola no Fundo da Quadra








Resolvi arrematar este trabalho com um relato diferencial de atendimento a um analisando com “traços perversos”, para que se possa confrontá-lo com os atendimentos citados acima, sobretudo no que diz respeito à relação analítica [processos transferencial e contratransferencial]. Um perverso é um belo contraponto.

Um paciente me procurou porque sua atual esposa lhe cobrava que ele assumisse seu relacionamento como pai com dois filhos de uma relação anterior. Esta esposa acabara de ser mãe, e se sentia incomodada com o descaso do atual parceiro com os frutos de sua antiga relação. Se ele se recusava a ser um pai para seus dois primeiros filhos, não serviria para assumir aquele que acabaram de ter juntos. Era esse o raciocínio da esposa. E por causa disso, o analisando me procurou.

Como outro paciente já citado [ainda menino, no capítulo XV], este rapaz crescera num ambiente de “apostas”. Seu pai era viciado em pôquer e corridas de cavalos. Também era um grande investidor imobiliário. Ele, desde a infância, era levado ao jóquei para assistir às corridas, junto com seu pai. Devemos dizer que o patrimônio do pai nunca fora comprometido por tais apostas [nada de dívidas com agiotas, por exemplo] e que ele era razoavelmente bem sucedido em todas as áreas em que se atreveu a apostar. O paciente vira o pai, muitas vezes, “se dar bem no jogo”. Também vira o pai perder, às vezes, como seria de se esperar. Os percalços eventuais relativos a esta vida incluíram algumas mudanças de residência, ao longo da infância e adolescência do analisando. Mudanças "longe da penúria", frise-se.  De uma “boa” casa para uma “piorzinha”, desta última para uma “melhor do que aquela que fora melhor”, e por aí vai. Mudanças de residência que mantinham um padrão médio bastante bom, mas oscilando conforme a temporada de ganhos do pai. 

O meu analisando era um empresário muitíssimo bem sucedido, com posses diferenciadas: carros, bens imóveis, aplicações. Dizia-me, no início da terapia, que sua mulher o alertara para que “eu não soubesse o quanto ele ganhava, para que não aumentasse o preço das sessões” [sic]. Era um esportista que, frequentemente, me falava de seu desempenho em clubes respeitados, no tocante a torneios de tênis amador dos quais participava. Muitas de suas falas eram reiterações de suas proezas, como costuma ocorrer com “narcisistas perversos”, e por isso mesmo faço questão de diferenciá-los dos esquizoides e borderlines já apresentados acima. 

Tal paciente também lucrava no mercado imobiliário, apesar de seu ramo empresarial ser outro. Comprava imóveis a preço venal de pessoas desesperadas e endividadas [viúvas, pessoas que haviam perdido a saúde e o emprego, e precisavam vender seus bens com urgência], para lucrar enormemente com a revenda destes bens. Achava seu comportamento “estritamente ético”, porque sempre raciocinava em termos de “legalidade formal”, como se vê, aliás, no raciocínio advocatício corrente. Ele não era advogado, mas sabia advogar em causa própria com imperturbabilidade notável. Fleugma ou cinismo, como queira o leitor.

Seu traço perverso também ficava claro nas brigas que tinha com a atual esposa, quando costumava dormir após provocar o choro daquela. O choro dela embalava seu sono. 

A certa altura, ouvindo-o narrar um sonho muitíssimo minucioso, o qual me permito omitir aqui, sobre sua primeira mulher, eu lhe disse que ela era ali depreciada como uma “fada madrinha má”. O paciente estancou frente à minha colocação. Disse que tal expressão, literalmente, já lhe havia sido pronunciada por um amigo próximo, e me perguntou “se eu era alguma espécie de vidente” (sic). Eu disse claramente que não, que apenas aquilo estava implícito nos termos de seu sonho. Recém-saído de seu estupor-causado-pela-surpresa [a coincidência de designação terminológica, por mim e por um de seus amigos], o paciente voltou a falar sobre o que diziam de sua mulher: como ele tivera coragem de “colocar seu pênis ali, numa mulher tão feia” e expressões muitíssimo mais chulas do que esta livre adaptação que estou fazendo dos termos por ele usados. De fato, ele a humilhava em vários âmbitos [sobretudo físicos, mas também intelectuais] nos comentários que aduzia ao relato do sonho. Ao lado disso, manteve seu “pasmo” frente à designação que eu dei à sua visão daquela antiga companheira: a "fada madrinha má". O exato reverso da fada madrinha. Como eu cheguei a repetir exatamente a fala de um amigo próximo, que tão melhor o conhecia? Para ele, isso soava como "puro absurdo". 

Sendo o paciente um bom tenista amador, trouxe-me o seguinte comentário, poucas sessões depois de minha intervenção: “Tenho visitado meus filhos [um menino e uma menina; o menino com cerca de oito anos, à época]. Sonhei que subia no elevador até seu consultório com o menino. Olhávamos no espelho [do elevador]. Eu lhe dizia: 'Quando você crescer, você vai ganhar do Marcelo no tênis'”. 

Eis aí um espelho. Outro espelho. Pai e filho estão diante dele. O paciente profetiza que “o filho ganhará de mim no tênis” [esporte que ele sabe que eu não pratico]. 

Minha intervenção foi a seguinte: “Parece que você considera que eu ‘rebato bem’ suas bolas. A leitura de seus sonhos são alguns destes games. Talvez tenha ficado impressionado com alguma bola que eu tenha colocado no ‘fundo da quadra’, nessas ocasiões. Torce para que seu filho não tenha a mesma deficiência de jogo neste fundamento que você, enquanto pai, parece experimentar, tomando-me como  ‘adversário’”.

Isso mesmo. Eu era um adversário respeitado, mas um adversário. No caso, sentimentos como “rivalidade, inveja, voracidade” estavam todos ali, presentificados na transferência, havendo, no entanto, uma boa canalização dos insights decorrentes dos mesmos [ou dessa "disputa"] para a retomada da visita aos filhos, acrescida da renegociação com a ex-mulher a este respeito. Ele percebeu suas virtudes de mãe, inclusive pelo olhar e falas dos filhos. Reconheceu que ambos estavam sendo "muito bem educados por ela". Frisou o "muito", inclusive. Deixou de usar expressões chulas a respeito da mesma, porque não mais correspondiam à sua nova percepção, à sua verdade emocional sobre o lugar dela em sua história, agora ressignificado. 

Passou as ver os filhos, e a conversar com a ex, com regularidade. Sua atual esposa parecia feliz com a mudança de postura. Contou-me do prazer recente de fazer reuniões em sua empresa, delegando a coordenação dos diálogos a bons mediadores ["parceiros de jogo", diria eu, no contexto], em vez de centralizar tudo. Interessava-lhe mais a “dinâmica de grupos”, entregue a especialistas em relações humanas e “gestores de pessoal”. Passou a ouvir mais aos seus funcionários, com maior qualidade de atenção. Os detalhes de certas expressões, por exemplo. "Simples designações podem ser eloquentes."

Trazia sonhos nos quais visitava antigas casas onde havia morado [muitas delas vendidas pelo pai, neste jogo de perde-e-ganha que fora a vida de investimentos e apostas daquele]. Até que um destes sonhos lhe chamou a atenção. Costumeiramente, as casas revisitadas em sonho estavam sem móveis [a situação clássica do “prestes a partir”]. Seu avô materno, “um homem muito grande, corpulento e pesado”, sofrera um derrame recentemente. Sua visão ficara comprometida, além dos movimentos. No sonho em questão [um “grande sonho”], o analisando carregava este avô materno sobre os ombros, num corredor extenso que parecia “conjugar muitos dos caminhos de muitas das casas por ele habitadas” [e mais: cômodos de diversas delas pareciam estar ao alcance daquele corredor], e lhe dizia: “precisamos encontrar seu pai; precisamos tirá-lo do escuro; precisamos salvar seu pai da cegueira”. O paciente carregava o avô nos ombros e este, paradoxalmente [porque com pouca visão, na "realidade da vigília"], funcionava como “seus olhos à procura do pai perdido nas trevas de seu labirinto passado”. Quis ter o avô materno mais perto de si. Convidou-o para passar longas temporadas em sua casa [com a atual esposa e o bebê], onde conversavam bastante. Reviu seu próprio pai através dos olhos do “sogro do pai”, e ganhou ainda mais em capacidade de atenção às falas dos outros, além de ampliar seu afeto e carinho pelo avô. Sua relação com o pai melhorou, bem como sua capacidade de empatia em geral.

Aqui está uma breve vinheta clínica de parte do atendimento de um paciente perverso [que também teve o narcisismo ferido mas, simultaneamente, “premiado” em seu peculiar padrão de desenvolvimento emocional], para que o leitor possa cotejar o que aqui está sendo apresentado com aquilo que já o foi nos demais capítulos deste ensaio. As repetições do perverso [suas falas repetitivas, de auto-congratulação ou depreciação de terceiros] são interrompidas e ganham outro rumo,  se [e quando] o analista interpreta cirurgicamente um conteúdo nevrálgico, uma imagem onírica, o intertexto daquilo que ele quer reiterar como "troféu"; enfim, a perspectiva muda se [e quando] o analista “rebate bem a bola lançada pelo paciente” [talvez “o saque potente do paciente”], muitas vezes no “fundo de sua quadra” [num lugar que ele, paciente, não poderia alcançar, nem pudera imaginar localizável]. Essa é uma ilustração singela de como o bom uso da rivalidade na relação transferencial pode resultar em bons frutos clínicos, e na interrupção da assim chamada “ladainha” ou das supostas "falas sem fim dos narcisistas em geral". Aliás, é um erro crasso ler a coisa toda nesta clave [que achata demais as nuances em jogo], uma vez que a "fala triunfalista" em questão é bem diversa da insistência do borderline ou do esquizoide em trazer mais material ao analista, com o fito de ser "minimamente legível e decifrável", como já vimos em capítulos anteriores. 

Com este ligeiro contraponto reitero o estatuto da imagem diferenciada [“o Ícone Totêmico de filho-avô conjugados procurando pelo pai-genro na escuridão labiríntica do Hades”] como participando de uma tonalidade tipicamente junguiana de trabalho, sem o apego ao pietismo de comparações mítico-narrativas literais ["em que mito tradicional isso aparece?"; pouco importa] e sem, tampouco, deixar de lado as vivências transferenciais tão caras aos psicanalistas clássicos. Ademais, sem a preocupação formalista-devota de “caçar as Imagos [ou arquétipos] tais como descritos e elencados pelo próprio Jung, tantas vezes entronizado como 'Pater Pneumatikós' pelos que aspiram a um dublê de guru que os guie no neo-panteón por ele explicitado: Persona, Sombra, Anima, Animus, Grande Mãe, Velho Sábio, etc. Não sou um devoto, como já deixei bastante claro desde o Prólogo deste texto [o leitor que desconheça miha posição, bastante avessa ao devocionário junguiano, é convidado a ler atentamente as observações que ali faço]. Que não se trate, portanto, imagem alguma como "peça de panteão" ou "relíquia sagrada". São lampejos no tecido vivo da psique: fulgurações que podem reverberar, em grau variado, no quadro geral [conceptual-emocional] que se tem das coisas. Isso para aqueles que experimentam a irrupção ou emergência de tais imagens. Não se pretende que elas "reconfigurem o olhar de qualquer observador externo à própria vivência". Por isso, o analista faz parte de uma "díade": ele é parte da equação no diálogo analítico. Ele também é transformado ou elucidado no processo e pelo processo. Que se entenda com clareza: tais imagens não são "troféus" ou "objetos numa exibição". São vetores: eixos invisíveis de (re)construção do(s) psiquismo(s) que as experimenta(m) emergindo em dado contexto dialogal-analítico. O arcabouço conceitual junguiano não é uma “Escritura” [sic], como não se deveria confundir qualquer construção epistêmico-analítica com a de "Texto Sagrado". As pistas advindas da escola junguiana [e pós-junguiana], sejam elas apreendidas sob um vértice fenomenológico, antropológico, histórico-comparativo, "neo-alquímico" ou metapsicológico [dentre tantos outros possíveis], constituem apenas [pura e simplesmente] matéria-prima para elaboração crítico-artesanal por parte de cada analista praticante. Nada mais do que isso. E assim como apresentei o conceito de individuação como um "conceito-limite", o mesmo faço em relação ao "O" de Bion: é bom para demarcar distâncias [uma aspiração da Coisa-em-Falta, sempre incompleta e paulatinamente preenchida], jamais para definir "consecuções". Acho interessante a relativa confluência das aspirações de Totalidade em Jung e Bion, cada qual a seu modo, mas relativizo ambas, por razões análogas.

Pois bem. Há um ano, conversando com uma amiga a respeito da publicação deste ensaio em formato de blog, e sabedora, ela, do fato dele, manuscrito, em sua confecção original se constituir de um punhado de seiscentas páginas, perguntou-me do “porquê do meu empenho em enxugá-lo para menos de um terço daquele volume”. Na época, eu lhe dei uma explicação, e hoje ela é ainda mais clara para mim mesmo. O objetivo do ensaio tornara-se minimalista em relação ao diário de registros que lhe dava lastro e de cuja guarda era eu o único responsável, sem a necessidade de qualquer co-testemunha. Não mais. A somatória de exemplos de sonhos vívidos e "impactantes", além da crueza de alguns casos clínicos mais extremos [no sentido da descrição mais milimétrica e pormenorizada de impiedade e sofrimento correlacionados], implicariam no risco de "uso sedutor de material simbólico-factual", o que é avesso à reflexão que me proponho a suscitar. O excesso de figuras impactantes costuma causar "desconforto" naqueles que nunca se depararam com elas, seja na própria vida onírica ou na clínica que exercem. E eu acho normal e esperado tal desconforto. A premissa básica de qualquer trabalho terapêutico, para mim, é desmontar círculos imantatórios ou encantatórios. Restrinjo-me, assim, ao material aqui coligido: qualquer acréscimo, nesta conjuntura e dentro desta proposta, só traria mais matizes ao que já foi exposto ao longo desses capítulos. E muita cor pode atrapalhar o foco. Recomendo ao leitor que volte  aos capítulo V e XI, "Quase-Presença" e "A Questão Narcísica da Irrealidade", como peças-chave na constituição deste ensaio. 







Marcelo Novaes