Subindo o Flanco da Montanha: Thomas Merton










Em quatro de outubro de 1948, Thomas Merton publicou sua autobiografia, “A Montanha dos Sete Patamares”. O livro cobre um trecho significativo da vida do futuro monge Trapista, da infância até um curto período após a conversão. Período este que coincide com o falecimento de seu irmão, John Paul, combatente das tropas de resistência [aviador] na Segunda Guerra Mundial. O próprio Thomas o convertera poucos meses antes.

“A Montanha dos Sete Patamares” está longe de ser uma “súmula” do pensamento de Merton. Não. Ao longo dos anos, ele avançou muito além daquela “visão clericalista” ali advogada. Muito além. Toda a importância do livro citado reside na visão detalhada e panorâmica que ele apresenta da infância, juventude e dos conflitos de Thomas Merton, que são dilemas típicos de um ferido narcísico. A partir de agora, chamaremos a este tipo de dilema como “os dilemas do Outsider”, os dilemas do homem-fora-de-lugar (ou estrangeiro-em-si-mesmo). Que são sempre, e prioritariamente, dilemas referentes à identidade. É bom que se frise isso. As questões narcísicas se referem à identidade e subjazem às questões pulsionais [controle dos instintos, impulso sexual, agressividade]; porque, ainda que essas questões todas também se façam presentes na trajetória do ferido narcísico, elas sempre serão subsidiárias [eventualmente, apêndices] de sua questão identitária de fundo.

Thomas Merton nasceu em 1915. Seu pai, Owen Merton, era um pintor nascido na Nova Zelândia. Sua mãe, Ruth Jenkins, era americana e também pintora. A carreira de Owen foi irregular [ainda que ele fosse, indiscutivelmente, bom pintor], e marcada por viagens. O dinheiro era pouco, as viagens muitas. Merton acompanharia o pai em muitas dessas “peregrinações artísticas”, onde Owen “caçava” inspiração para suas aquarelas, paisagens e marinhas, com a acolhida de alguns amigos. E também se dirigia para onde lhe ocorresse poder expor e vender seu trabalho.

Ruth Jenkins morreu em 1921, quando Thomas tinha apenas seis anos de idade. Em sua autobiografia, ele se ressente de não ter correspondido às expectativas da mãe, segundo seu [=dele] parecer. No ambiente da Primeira Guerra Mundial, Merton cresceu adquirindo progressiva consciência da estupidez da Guerra [de todas as guerras]. Guardou de sua mãe a impressão de uma mulher “preocupada” e perfeccionista. Aliás, Ruth Jenkins mantinha um diário sobre o desenvolvimento do filho Thomas. Foi a partir da leitura tardia deste diário que Merton chegou à conclusão de ter sido uma decepção completa para sua mãe. Neste diário, segundo Thomas, a mãe demonstra certo “espanto” pelo seu desenvolvimento “espontâneo” e “imprevisível”. Entre as suas excentricidades ficamos sabendo de certa “adoração quase ritualística do bico de gás da cozinha”; coisa que, certamente, traz preocupação a uma mãe. Ficamos sabendo, também, que Thomas tinha um amigo imaginário, Jack, e que este tinha um cão imaginário, Doolitle. Lendo o diário da mãe, Thomas constata a preocupação dela quando ele, com quatro anos [na mesma época do “culto ao bico de gás”] se recusou a atravessar uma rua, com medo de que o cão imaginário, Doolitle, fosse atropelado. Ela providenciou pra ele uma educação caseira “perfeitamente estruturada”: um pacote de livros, mapas, carteira e lousa. Thomas Merton se lembra de ter ido cedo para a cama, de castigo, por ter pronunciado mal a palavra “which”, aos cinco anos de idade. De qualquer maneira, o menino Thomas gostava dos mapas e de um livro sobre Heróis Gregos. Quando sua mãe faleceu, com câncer no estômago, as poucas finanças da família tinham sido gastas com o tratamento. O pai quis ir à França, para poder desenvolver sua arte junto à companhia de amigos. Desde então, Thomas e John Paul passaram a acompanhar o pai, ficando em colégios onde, por vezes, não eram bem recebidos como “estrangeiros itinerantes”. Ambos os irmãos conheceram, na infância, certa dose de “assédio moral” [bullying] nas escolas pelas quais passaram. Thomas gostou muito da França, mas haveria, ainda, Bermudas, Inglaterra, Massachusetts, como locais para onde seu pai deslocaria ou os deixaria, quando em deslocamento [em colégios internos, por exemplo]. Ainda que apresentado como amigo e idealista, podemos considerar Owen Merton como um pai ausente. A solidão de John Paul e Thomas na infância é patente. Owen Merton morreu em 1931, quando Thomas tinha 16 anos de idade.

Tendo feito sua formação de primeiro e segundo graus em Nova Iorque, Bermudas, França e Inglaterra, Thomas órfão alternaria sua residência entre a casa dos avós maternos [EUA] e de seu padrinho, o médico inglês Tom Izod Bennett, antigo colega de estudos do seu pai.

Thomas e John Paul cresceram com “poucas raízes”, para dizer o mínimo. Thomas não encontrava um senso de lar, aliança verdadeira com amigos duradouros, além da ausência dos pais, precocemente falecidos. Teve seus estudos financiados por Tom, o padrinho, instalando-se primeiro em Cambridge, onde procurou companhia e seus pares nas “fraternidades estudantis” e nas festas e bebedeiras dos jovens de seu tempo. Isso desenvolveria, nele, uma natureza dissipadora [resultando em broncas do padrinho], e certa auto-confiança precoce e frágil [porque auto-confiança defensiva, sobretudo intelectual].

Em meio à grandes farras e questionamentos referentes ao seu tempo [o Comunismo como alternativa de Justiça Social ao pós-guerra, a filosofia existencialista, o horror da tecnologia a serviço da destruição],  carregando ora D. H. Lawrence sob o braço, ora William Blake, Thomas ia procurando critérios para achar sua verdade e integridade, além de medir a integridade dos outros. [Certa feita, num trem, rasgou um livro de D. H. Lawrence, murmurando para si mesmo: “Esse cara não sabe o que está dizendo!”].

Além de muita ressaca [inclusive moral], e a gravidez de uma jovem em Cambridge [fato que se resolveu por um acerto entre famílias], Thomas continua seus estudos na Universidade de Columbia. Sua experiência com a liberdade resultara, para ele mesmo, um tanto caótica, sem que soubesse, exatamente, o que fazer dela. Sua busca por essa liberdade e integridade o faz desenvolver uma tese de mestrado sobre William Blake. Diz ele, que se tivesse entendido a fundo o escopo sobre o qual trabalhava [“Sobre a Natureza e Arte em William Blake”], teria se curado de sua cisão. [Em termos menos clínicos: teria se curado de sua rebelião e divisão internas: Merton lutando contra Merton, sem entender quem era Merton]. Questões ecológicas, falsos misticismos baseados em noção de “raça”, e outros assuntos dessa ordem, eram suas preocupações de então, além das festas e aventuras afetivas. Merton foi se sentindo compelido a ser íntegro, enfadado com seu próprio egoísmo.

Em 1938, tem uma conversa com um de seus ex-professores de Literatura, Daniel C. Walsh, a quem confidencia a vontade de ser sacerdote. Isso não causa surpresa ao amigo, que lhe sugere um contato com a Ordem Franciscana.

A caminho de sua entrevista com Frei Edmundo, Thomas Merton vivencia uma “crise de angústia identitária” que vale a pena relatar aqui. E é interessante que o leitor deste blog a compare com os fatos narrados no capítulo anterior deste ensaio, com a crise de pânico-despersonalização da jovem paciente do capítulo anterior.

Acompanhemos Merton, após ter seu pedido ao noviciado preliminarmente aceito por Frei Edmundo.

“Lembrei-me, de repente, de quem eu era, de quem havia sido. E fiquei pasmo, pois desde setembro passado parecia haver esquecido de que fora um pecador contumaz.

Percebi, de repente, que nenhum dos homens com quem havia falado sobre minha vocação, nem Dan Walsh nem Frei Edmundo, sabia quem eu realmente era. Nada sabiam de meu passado. Não sabiam como eu tinha vivido antes de entrar para a Igreja. Eles simplesmente me tinham aceito porque eu tinha uma apresentação razoável, tinha uma fisionomia bastante franca, parecia ser sincero e ter uma boa dose de bom senso e boa vontade. Certamente não era o suficiente.

E agora veio o terrível problema: “Tenho de procurar Frei Edmundo e contar-lhe tudo isso. Talvez isto faça uma grande diferença”. Em suma,  não basta o simples desejo de entrar para um convento.

[...]

Imediatamente arrumei a mala e parti para Nova Iorque.

Parecia uma viagem interminável, enquanto o trem se arrastava pelos vales verdes. Quando descíamos o Delaware para Callicoon, onde os franciscanos tinham seu seminário menor, o céu estava coberto de nuvens. Passamos devagar, e as primeiras casas da aldeia começaram a desfilar rente ao flanco dos vagões. Um garoto que estivera nadando no rio veio correndo por uma trilha no meio do capim alto, fugindo da tempestade que se anunciava. Sua mãe o chamava da porta de uma das casas.

Tomei uma vaga consciência da minha condição de órfão sem lar.

Depois que o trem fez a curva e pude avistar a torre de pedra do seminário no alto da colina, entre as árvores, eu pensei: ‘Nunca vou morar ali; tudo acabou’.” [A Montanha dos Sete Patamares, pp 267-268]

As questões de Thomas Merton não são as meras questões de pudor e/ ou julgamento. A questão é mais funda.

1) Ninguém o conhecia como ele verdadeiramente era. Eis o primeiro ponto. Um senso fundo de insinceridade ou “não-sinceridade suficiente”. Faço aqui uma observação crucial: não deu tempo de seus pais o conhecerem. Nem ele mesmo a si. E nessa busca desenfreada por definir-se, ele já não sabia quem era para si mesmo.

2) Havia nele o senso de que a aparência que os outros lhe atribuíam era muito menos do que suficiente para conhecê-lo. Assim como ele conheceu o olhar da mãe sobre ele pelos diários daquela, e postumamente. Assim como seu pai fora um andarilho, ao mesmo tempo próximo-e-estranho, um senso fundo de anomia e anonimato pairou sobre ele, como uma tempestade.

3) Compare-se o dito com a náusea vivida pela paciente do capítulo anterior ao se ver numa foto, numa festa de natal, e saber-se estranha para os que a circundavam [inclusive pai e mãe]. Compare-se o sentimento de “orfandade” ante o rugir da tempestade lá fora(-dentro) nos dois casos: da representante de vendas, autônoma, e do aspirante ao sacerdócio. Compare-se a similaridade da eclosão do sentimento de desamparo de um e outro, emoldurado pela paisagem em torno [o tempo fechado emoldurou-lhes a orfandade e ausência de espelho].

4) Compare-se, por fim, o desfecho em ambos os relatos: o “eu quero morrer” da jovem, com o “ eu nunca vou morar ali [não tenho lugar no mundo]; tudo acabou”, de Thomas Merton.

Tempo fechado para Thomas Merton.

Ele não foi aceito. Mas posteriormente, mais maduro, acabou ingressando na Ordem Cisterciense.

Por enquanto, esboçamos a ferida narcísica em sua gênese e no padrão de crise [angústia identitária, “ausência de espelho”] que essa ferida suscita. Adiante, problematizaremos suas resoluções possíveis.

Estamos avaliando o “desenho específico” dessa dor. Estamos esboçando um quadro e mapeando algumas de suas variáveis.












Marcelo Novaes





Bibliografia sugerida:




Merton, Thomas (2005). A Montanha dos Sete Patamares. Petrópolis. Ed. Vozes.

Shannon, William Henry (1992). Silent Lamp: The Thomas Merton Story. The Crossroad Publishing Company.

Shannon, William H. (1994). Witness to Freedom: The Letters of Thomas Merton in Times of Crisis (The Thomas Merton Letters Series, 5). Farrar, Straus, Giroux.

Shannon, William H.; Bochen, Christine M.; O'Connell, Patrick F. (2002). The Thomas Merton Encyclopedia. Orbis Books.