O Portador do Fio









Espirais. Pense em espirais. A evolução dos tópicos neste ensaio será “espiralada”, indo e retomando assuntos, sempre numa oitava superior de complexidade. É a única forma de fazê-lo: não-linear.

Falando em “quase-presença” eu terminei meu último capítulo assim:

Em palavras cuidadosamente escolhidas: o self foi confiscado pelo objeto ideal, pela mãe que foi retirada ou quase-esteve ali. Essa mãe esquiva, fugidia ou imaterial arrastará e reterá o eu dentro de si, como uma “sombra-cápsula do senso de ser-um-eu.” Assim, este “eu” também será fantasmático, pois precisará do espelho-sombra para reconhecer-se, um espelho que é quase e que é ontem. Esse eu sonha com a chance de olhar-se e se tornar consistente. Essa mãe-espelho fantasmática o reterá como uma atmosfera [uma Ambiência Numinosa e Confiscadora; cifra: Lâmia], uma nostalgia dentro e em torno de si que é, ao mesmo tempo, nostalgia de si próprio e do objeto. “Uma ponta de evanescência no mirar-se”.

Em palavras cuidadosamente escolhidas, foi o que eu disse.

Pensemos num sujeito que vê um dos pais sofrer um colapso, quando está na primeira infância: um pai que chora e desaba dizendo não saber como agir diante de uma briga de irmãos, um pai que teme que o filho mais velho morra se ele dormir sobre o lado esquerdo [!], a mãe que fica sem falar e sem comer depois da morte de um ente querido. Todas essas situações também fazem o sujeito “perder o objeto” [perder o vínculo com o objeto-cuidador, com o objeto parental], e se refugiar [ou ficar confiscado] num objeto interno sombrio e fantasmático. Como perceberemos, este confisco melhor será definido como sendo a uma “ambiência interna”, e a uma série de objetos fantasmáticos, além de porções cindidas do “eu”.

Vejamos as cenas: o menino de seis anos vê seu pai desabar nos ombros da mãe, diante de uma demanda por decidir uma briga entre irmãos, dizendo: “Eu não consigo saber o que é certo; eu não consigo tomar uma decisão”. Vejamos outra cena, com um breve histórico: a menina é adotiva. Quem a adotou tem idade para ser sua avó. Sua mãe biológica já teve seis filhos, muitos dos quais deu ou abandonou. Um de seus irmãos mais velhos é mendigo de rua. A menina tem sentimentos variados e ambíguos em relação a tudo isso. Tem raiva da mãe. Pena e nojo do irmão. A mãe-avó adotiva [que já adotara mais de trinta crianças!] tem crises de asma que a põem de cama, tendo de tomar oxigênio e ser assistida por enfermeiros. A criança [cinco anos] se sente, ao mesmo tempo, isolada, “nostálgica” e impotente. Como socorrer a mãe-avó? O que fazer em relação ao irmão que vê sujo pelas ruas?

Bom, esses sentimentos são confusos, e só encontrarão “um nome mais claro” na adolescência. Até lá, serão presenças difusas ao fundo do senso de ser-estar dessa criança em meio a toda conjuntura apresentada. Na adolescência, ele poderá dizer algo como “minha mãe é uma puta irresponsável, uma parideira sem juízo, faz um filho com cada macho” [frases que ela, de fato, disse, mais ou menos assim...] e “meu irmão é um bunda-mole vagabundo, e eu tenho vergonha dele”. Qualquer laivo de piedade fica engolfado pela raiva, nessa “tomada de consciência tardia” que, na verdade, não é uma “tomada de consciência”, mas uma “nomeação daquilo que difusamente ela já tinha consciência”.

Mesmo adolescente, e mesmo longe da mãe biológica [não tão longe, porque ela sempre pode saber dela que, inclusive, continuou a engravidar...], a adolescente permanece “imantada” a este “círculo encantatório de presenças internas”. Em muitos quadros de depressão e raiva [a depressão ansiosa é algo muito comum, e mesmo na “depressão apática” encontramos, frequentemente, “raiva ao fundo”] encontramos a pessoa difusamente ligada a este círculo/circuito imantatório [“encantatório”] que inclui dois fatores claros:

1) Uma sensação de “cerco” por algo sombrio e difuso [muitas vezes “fantasmagórico”]. Vou aqui chamar, com razões de sobra para a escolha, a este sombrio difuso de Numinoso Sombrio.

2) Além do cerco por tais presenças, subjaz ao “eu” [ao self] uma espera ou esperança pelo “vínculo ideal” [a mãe rejeitadora que não deveria ser assim, ou a avó doente que deveria cuidar dela; sem falar no irmão que ela preferia não ver como espelho amplificado de seu próprio abandono].

Enfim, o sujeito [no caso, a adolescente] fica fixado(a) numa solidão muito peculiar [veremos que se trata de uma “solidão ontológica”] e numa ambiência interna nostálgico-tantálica. Sim, a nostalgia [“saudade do que poderia ter sido”] o imanta “para trás e para o fundo”. A nostalgia é uma fator regressivo, que o deixa [ou a deixa] preso(a) a uma infância fantasmática.

Poder-se-ia cogitar que a adolescente deveria considerar todos os fatores em jogo com benevolência e altruísmo: as más escolhas da mãe quanto a parceiros e progênie, a semi-suficiência da mãe-avó, o destino aparentemente inescapável de seu irmão morador de rua. Mas, lamentavelmente, as coisas não se dão assim, até porque essas presenças já fazem parte do “plano de fundo” da criança numa situação [e num tempo] onde sua necessidade de cuidados era imperativa, e suas catalogações e julgamentos morais eram incipientes [“isso me faz bem, isso me faz mal”]. Primitivamente [e originariamente] é assim que as pessoas reagem na primeira infância [e muitos até o fim da vida].

Senão vejamos: o estado de estar perdida, esperançosa [=à espera, mesmo que desesperançada...] de um rumo e imantada a uma ambiência Sombrio-Numinosa já se dá no primeiro sonho apresentado por esta adolescente, em análise. Ela precisa comprar bolacha [=nutrição]. Não sabe onde fica o supermercado, ou qualquer lugar que “venda alimento”. Há um homem cego, velho e roto, sentado numa pedra [um mendigo amplificado a dimensões ancestrais e míticas]. Ele gira o seu dedo indicador de uma das mãos para todas as direções, como uma bússola quebrada. E “não fala coisa com coisa”. Murmura uma litania de si para si. Diante de qualquer interrogação da adolescente, a resposta é essa: sombria e mítica [“o velho andrajoso e cego apresentando uma litania e o símile de uma bússola quebrada”]. Ninguém precisa de ilustração mais mítica [ou “sombrio-numinosa”] para umas das presenças de fundo da adolescente. Isso já é um bom retrato de suas procuras, de sua imantação a um mundo de presenças internas e de sua desorientação básica.

Ao longo da análise, podemos ver a evolução dessa desorientação para uma figura jovem feminina [um “duplo” da própria paciente], segurando uma varinha [como esses ramos bifurcados de galhos, usados em radiestesia], dentro de um rio, orientando-se com energia [com água até a cintura]. A essas figuras condutoras [chamadas “psicopompos” nas mitologias clássicas, e muito estudadas por Jung], eu gosto de chamar de “portadores do fio”. Sim, poderíamos pensar, no caso, numa “Melusina portando a bússola” [não mais quebrada, como no primeiro sonho], mas não nos é difícil reconhecer em tal figura um avatar de Ariadne [a que oferece o fio dentro do labirinto]. O fato de estar “semi-imersa no inconsciente” está representado pelo fato da figura onírica estar num rio, e com água até o meio do corpo. O tema da orientação/desorientação é retomado [o tema da “bússola”, que pode ser sintetizado no tema do “fio” “confiança”, “fiar-se em”/ “confiar”, “poder seguir em frente tendo um rumo”]. Qual era a primeira procura [a procura fundamental e originária] da adolescente no primeiro sonho [o sonho inaugural da análise]? Era por nutrição [o lugar onde comprar “bolacha”/ “comida de criança”]. O que a melusina/“portadora-do-fio” pode estar tentando achar com tal recurso mágico-natural [um recurso “tão magnético” quanto a idéia de bússola...]? As respostas da adolescente são: 1) Um lugar que tenha cardumes [= nutrição, também]. E à pergunta: “Ela sabe sair do rio”? A adolescente não reluta em afirmar: 2) “Claro. Ela sabe o caminho, porque criou-se ali”. Ora, ela criou-se ali, nas imediações ou “dentro do rio” [ela nunca saiu da água, como uma melusina mesmo...]. Podemos ver que este “duplo”, mesmo com senso de orientação, conhece o que é estar “com água até a cintura”. Uma “Ariadne fluvial”, por certo...

No primeiro sonho encontramos um absoluto senso de desorientação: a figura cega sobre a pedra, ancestral e quase inumana [mesmo amalgamando em si os andrajos e a condição de sem-lar do irmão – “quase inumano”] nada tem a oferecer ou dizer de útil [sua litania é incompreensível, seus olhos não veem, e sua “bússola está quebrada”]. No outro sonho aqui narrado, há um senso intuitivo de orientação.

Depois da “quase-presença” assinalada no capítulo anterior, encerro este capítulo apresentando-lhes “o portador-do-fio”/ “a portadora-do-fio”.








Marcelo Novaes