Tempo Fechado para o Ferido Narcísico









Ela estava com cerca de trinta anos. Seu emprego de final de ano havia lhe rendido alguns bons trocados, em meio a viagens. Era uma representante comercial. As viagens eram, sobretudo, para o interior do estado onde morava. Viagens de poucas horas. Formação superior, independência econômica da família, fisicamente cobiçada. Nada pudica, nem promíscua. Solteira e individualista.

Algum desconforto recente, numa dessas viagens. Um suor angustiado, uma pressa [e uma angústia] pelo vir a ser [pressa e temor, ao mesmo tempo], que era “mais do que querer chegar rápido ao destino”. Após fazer suas vendas, pediu para ir ao banheiro, lavar o rosto. Olhando-se no espelho, teve aquele rápido lampejo [e inequívoco desconforto] de “despersonalização”. Olhava-se como que “de fora” [“quase como um elefante olharia para um humano”, foram as suas palavras]. Após grande crise de ansiedade, tendo feito [com dificuldade] o trajeto para sua cidade, sentia a musculatura da coxa direita tremer involuntariamente, como resíduo de um estado de stress. E também a pálpebra.

A partir de então, surgiram as crises de pânico. Temia sentir “aquilo” presa no carro, em meio a qualquer viagem profissional. Foi visitar a mãe na data de aniversário dela [= da mãe]. Encontrou a casa com convidados e convidadas, com os quais não tinha intimidade. Cumprimentou-os socialmente, e foi para outro cômodo da casa que conhecia bem, pois que havia sido seu quarto.

O tempo fechou lá fora: desses rápidos escurecimentos e tempestades de verão. Ao voltar da cozinha, onde tomara um copo d’água, a lâmpada de seu antigo quarto queimou. Desabou, então, a tempestade. Não iria sair da casa da mãe e ficar presa no trânsito urbano, num dia como aquele. Angustiava-lhe a perspectiva. Não iria se esforçar para se desempenhar numa conversa social com quase-estranhos, ainda mais estranhos por serem de outra geração. Sentiu-se, ela, a estranha, naquele momento.

Sim. Ela se deu conta de sua própria estranheza, reavivando o sentido de “despersonalização ao se olhar no espelho” na “casa estranha”, dias antes, em outra cidade. Aparentemente, a situação de estar sem-saída se reavivava ali, em sua antiga casa. Mas, desta vez, com nuances bastante particulares. Não era o “pânico” que se costuma conhecer, desses das revistas e noticiários de televisão, um sentimento quase-anônimo e tão descrito, quase impessoal e indiferenciado, mas tão “classicamente fisiológico”. Era possível dar-lhe nome, mas um nome que só viria um pouco adiante...

Ela ouvia o burburinho da sala, e as conversas comemorativas. Aquilo lhe parecia longe. Como não parecesse “reconhecer”, de fato, aquelas pessoas “de longe” [e eram “longínquas”, mesmo algumas nuances de sua própria mãe...], o outro polo da situação lhe ficou progressivamente patente: a de que a mãe não devia lhe reconhecer, no fundo. Quem a conheceria verdadeiramente?!

Não considerou alívio algum se valer do celular para contatar algum amigo. Considerou, sim, naquele momento, que qualquer busca por aproximação física seria uma “fuga daquela solidão”. Vou chamar essa solidão de “solidão ontológica”: a solidão à qual não se pode fazer [nem trazer] companhia.

Naquela circunstância, então, ela considerou quantos amigos [e amigas] poderiam desejar a sua companhia, mas julgou que “ninguém a conheceria de fato”. Não sob aquele ângulo. Considerou as amizades eróticas como um passatempo desprezível e sem grande alcance, um anestésico contra tal solidão profunda. Viu, naquele momento, que muito do sexo que fazia [e fazia com regularidade e inconfundível prazer, assim lhe parecera até ali...] tinha essa feição de “anestésico” ou “distração”. Anestésico contra a tal solidão indizível. Distração dessa mesma solidão.

Mas, ciente disso tudo, ela não queria [e nem podia] distrair-se. Sentiu, simplesmente, que não lhe era possível mentir ou desviar-se da questão. A idéia de tentar aparentar um estado minimamente disposto ao telefone [para qualquer eventual interlocutor] lhe causava asco. Literalmente: ânsia de vômito. Já tinha ido à cozinha, sem se deter na sala, para não chamar muito a atenção sobre si. A idéia de chamar a atenção “daqueles estranhos da sala” sobrepunha-lhe um desconfortável “constrangimento íntimo” [“ansiedade, vergonha, embaraço, medo, tudo misturado”] ao nojo que sentia de tentar disfarçar sua solidão para os amigos, caso recorresse ao telefone.

Foi ao banheiro, contíguo ao quarto, e teve “aquele movimento espasmódico do vômito, mesmo de estômago vazio”, como era o caso. Só pôs só água pra fora. Sabia ser “um enjoo puramente emocional”, isso era óbvio. Uma ânsia de vômito “de puro nervoso”. Não tinha como explicar a ninguém “o que teria comido que lhe fizera mal”, e outras coisas que tais. Isso lhe causava ainda maior ansiedade em não querer chamar atenção sobre si, tendo de tentar explicar para os outros “o inexplicável”. Todos quereriam achar razões objetivas para o mal-estar, era o que ela pensava. “Sempre querem achar uma razão objetiva pras coisas”. Tentava, então, se acalmar no quarto, sem nenhuma “fuga” ou “despedida” apressadas, o que causaria mais estranheza a todos os circunstantes: mãe e convidados. Tentaria se acalmar “e ponto final”. Talvez voltasse à cozinha, pegasse mais água, para tomar um comprimido de Plasil. Imaginava saber onde encontrá-lo, se as coisas na casa da mãe não estivessem tão mudadas.

E não estavam. Estavam e não estavam. Pois o sentimento de estranheza como que pairava sobre tudo que já era sabido. Ou previsível. [E, sobretudo, pairava...].

No seu antigo quarto, com a lâmpada queimada, tentava se acalmar. Até porque a perspectiva da tempestade lá fora era ainda menos animadora do que estar ali. No mínimo, refletia-lhe a tempestade íntima, em matiz “tão sombrio quanto”. “Não tinha pra onde correr”.

Olhou para uma foto antiga, sua com seus familiares, sobre um porta-retrato. Estava na penumbra. Sua estranheza, agora, tinha, por acréscimo, um sentimento de dor profunda: o sentimento de ter sido “absolutamente anônima” naquela época. Anônima para todos aqueles que estavam na foto. Ninguém conhecia boa parte das suas questões de então: chantagens que experimentava no ambiente escolar, humilhações físicas relativas à desproporção dos seios para o corpo que tinha na época, além de acne bastante grave. Havia assédio e desprezo misturados por parte dos outros. Tinha medo e distância do pai, na ocasião. Parecia-lhe que ele se esquivava de ver seus eventuais dramas juvenis, além de ser muito severo. Sabia que sua mãe também tinha medo dele. Na infância, era frequentemente punida por coisas bobas. Ou por outras que nem havia feito. Quando dizia ao pai não ter feito nada, ele sempre lhe respondia “e daí?”. Impunha-lhe surras ou castigos morais [ficar um tempo longo sem sair nos finais de semana, jantar e dormir cedo, etc]. A mãe, simplesmente, lhe olhava com uma “expressão de impotência quase-empática e ao mesmo tempo esquiva”, do tipo [do tipo é expressão dela...]: “Não fui eu que te bati nem te pus de castigo, filha..., mas não posso fazer nada “contra teu pai”... O pai, agora, já era falecido. Impossível, para ele, “ser apresentado àquela jovem” ou, ainda mais difícil, “àquela menina magoada”. Impossível, para ela, apresentar-se a ele. Tudo era “tarde demais” e “nublado”. E a mãe, naquela sala, não conhecera aquela pessoa desde muito cedo. Ou se omitira, por receio, “preservando a si mesma de sua vulnerabilidade conjugal” [expressão da moça].

Outras solidões mais antigas vieram à tona. Não poderia “atualizar” a nenhum de seus novos amigos [ou amigas] essas tais solidões ancestrais. Nem era o caso. Mas olhar aquela foto, ali, no quarto com lâmpada queimada, simplesmente lhe despertou soluços. Soluços fortes, desses de “se chorar com a barriga, curvando-se” [tradução da moça], em profundo lamento. Fechou a porta do quarto, com medo de que a ouvissem. “Chorou curvada” por mais de quarenta minutos, aquele choro sentido e antigo, olhando para a solidão de longe... Achou-a, naquele momento, “irremediável” [“uma solidão irremediável”; “uma coisa que não tem conserto”]. Não acreditava, simplesmente, na eficácia de qualquer companhia ou lenitivo para aquela tristeza e aquele sentimento de “não ter sido vista”, nem pelo pai. A idéia de ser “corporalmente aceita” por qualquer dos amigos que viesse a procurar, até sexualmente aceita [e com facilidade], só fazia parecer ainda mais [e ainda maior] aquela solidão sem-fundo. [Que era aquela solidão-de-fundo].

Não ser vista por pai nem mãe [ele já falecido] lhe parecia uma espécie de “orfandade” inescapável. Incontornável. Uma “orfandade do espelho” [essa expressão é minha]. A superposição da estranheza que tivera diante do espelho estranho na tal viagem recente se somou àquele estado. Tudo se somava: dor pela(s) perda(s) [“não dá pra acertar as coisas com a pessoa que já se foi”], o sentido do anonimato e ferida irremediáveis perante “os próximos”, pai e mãe: ela aniversariando, ele falecido... O sentido de absoluta “irrelevância do desejo masculino perante aquela solidão” [Narciso engole Édipo, porque lhe é anterior, cronológica e axiologicamente falando: na escala do Tempo, e na escala do Valor; o Mito de Narciso tem primariedade e prevalência sobre o de Édipo], a náusea que isso lhe trazia, o “sentido de não haver lugar onde pudesse estar livre disso” [“fosse à cidade que fosse, com quanto dinheiro tivesse”, para lazeres que lhe pareciam, naquele momento, de todo, “inúteis”]. “O tempo estava fechado”.

Lá fora, continuava a tempestade. Ia ao banheiro lavar o rosto, mais uma vez. Mas, diante da pia, se curvara naquele choro convulso [“o que nasce da barriga”...] ouvindo a si mesma falar uma expressão lamuriosa, que reconhecia ter sido dita desde lá atrás, muitas vezes... Sua voz dizia simplesmente o seguinte: “Eu quero morrer...”. Isso foi repetido muitas e muitas vezes, até que sua mãe apareceu, consternada e assustada, à porta do banheiro, perguntando “se ela estava bem”...

Pelo momento, registre-se a cena, para que se tenha um breve flagrante das questões de fundo [que são questões de base] do ferido narcísico.

Relembrando um trecho da postagem, logo acima:

Não era o “pânico” que se costuma conhecer comumente, desses das revistas e noticiários, um sentimento quase-anônimo e tão descrito, quase impessoal e indiferenciado. Era possível dar-lhe nome, mas um nome que só viria um pouco adiante...

E o nome era: “Eu quero morrer..., eu quero morrer...”
[Narciso tem grande proximidade com Tanatos].








Marcelo Novaes